Casal teve o direito negado a registrar o nome do responsável legal da criança no momento do parto e de identificar a pessoa trans como do sexo masculino na ficha de identificação do hospital no momento do parto e do atendimento pré-natal
O vereador Fabrício Rosa (PT), ouvidor especial de Combate a Crimes Raciais e de Intolerância da Câmara Municipal de Goiânia, encaminhou ofício na sexta-feira (24/1) ao presidente do Conselho Estadual de Saúde de Goiás (CES-GO), Walter da Silva Monteiro, para denunciar um caso de LGBTQIA+fobia contra um casal homoafetivo formado por um homem trans e um homem cisgênero no momento do atendimento pré-natal e do parto na rede pública de saúde. A denúncia também foi enviada à Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), do Ministério da Saúde.
No ofício, Fabrício Rosa solicita que os sistemas eletrônicos de prontuário e de gestão das redes de saúde municipal, estadual e federal sejam adaptados para considerar “toda a diversidade de nossa sociedade, em especial permitindo que homens transgênero possam ter acesso integral à saúde sem desrespeito a sua identidade de gênero”.
O vereador também requer ao presidente do CES-GO que seja feita a devida apuração dos fatos denunciados por meio do ofício, com a responsabilização das pessoas em caso de comprovação do cometimento do crime de LGBTQIA+fobia e outros ilícitos citados na denúncia.
Fabrício Rosa também solicita a criação, articulação e promoção de políticas públicas de letramento e educação que respeitem a diversidade. “Na expectativa de que as providências sejam adotadas com celeridade, reiteramos nosso compromisso em combater todas as formas de discriminação, intolerância e violência institucional”, afirma o vereador.
Entenda o caso
Após denúncia feita pela Associação Goiana de Pessoas Trans (Unitrans-GO) no dia 15 de janeiro, o vereador Fabrício Rosa tomou conhecimento de que um casal homoafetivo teria sofrido LGBTQIA+fobia em unidades de saúde pública de Goiânia. Em um primeiro momento, a equipe do Hospital Estadual da Mulher (Hemu), que atendeu o paciente grávido, se negou a identificá-lo como pessoa sexo masculino, já durante o trabalho de parto, na noite de 14 de janeiro, no sistema de identificação da Secretaria de Estado da Saúde (SES-GO).
“O casal homoafetivo, composto por um homem transgênero e um cisgênero, decidiu ter um filho e, desde o início do acompanhamento médico da gravidez, sofreu diversas violações de direitos, desde a utilização de pronomes incorretos de forma sistemática, até a negativa de inclusão de nome dos dois genitores em documentos do nascituro”, descreve o parlamentar.
Negativa da identificação adequada
Ao receber atendimento de pré-natal, o homem trans grávido sofreu transfobia do sistema de saúde quando foi negada sua identificação de gênero como masculina, conforme consta na Carteira de Identidade retificada do paciente, relata o vereador.
“Aparentemente o sistema não admite que pessoas do gênero masculino sigam o caminho do atendimento obstétrico. Contudo, como se sabe já há um bom tempo, homens podem engravidar e ter filhos, o que revela uma grave falha sistêmica na saúde pública, sendo urgente que se proceda a atualização de procedimentos, sistemas e letramento de trabalhadores e trabalhadoras da saúde para que possam tratar as pessoas transgênero com dignidade e respeito.”
De acordo com Fabrício Rosa, após o casal homoafetivo passar por todas as dificuldades na rede municipal de Goiânia, foi preciso buscar atendimento em uma unidade estadual de saúde para que fosse garantida a dignidade no momento do pré-natal e do parto. “O homem trans não teve qualquer tipo de amparo provido pela rede municipal de saúde”, denuncia o ouvidor especial da Câmara Municipal.
Os mesmos problemas na rede estadual
Contudo, em um primeiro momento, ao darem entrada na rede estadual de saúde, os problemas de identificação no sistema de pacientes – MVPEP – continuaram.
De acordo com a denúncia, o Hemu não aceitou registrar a entrada do paciente como se fosse do gênero masculino e negou atendimento obstétrico caso ele se identificasse como homem. O primeiro problema foi resolvido com o início do atendimento do parturiente, apesar do constrangimento.
“Mesmo com o reconhecimento pelo sistema informatizado de seu gênero, o homem trans foi vítima de uma série de violações de seus direitos, sendo tratado no pronome feminino de forma sistemática e reiterada, mesmo após dezenas de correções feitas por seu companheiro.”
Segundo Fabrício Rosa, o tratamento indigno e desrespeitoso chegou ao extremo quando profissionais que estavam presentes no momento do parto chamaram o homem trans, já sob efeito de anestésico, de “ela” e “mãe” a todo momento, mesmo com os pedidos explícitos de seu companheiro para que fosse respeitada a identidade de gênero do paciente.
Os insistentes pedidos do companheiro do parturiente fizeram com que uma das profissionais da equipe parasse de usar pronomes para se referir ao paciente, momento em que ela passou a tratar o gestante “como se não fosse um ser humano”, descreve Rosa.
Declaração de Nascido Vivo
O parlamentar denuncia que o tratamento desumano continuou no momento do preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), que é feita para identificar o bebê e seus pais após o parto. “A equipe médica se negou a preencher o campo IV, que traz a identificação do responsável legal, sob o argumento de que o cartório poderia ‘achar estranho’ que constasse o nome de dois homens e que o casal poderia ter problemas no momento de fazer o registro civil da criança.”
Mesmo com o pedido expresso do casal para que o campo referido do DNV fosse preenchido, a equipe que atendeu o gestante se negou a colocar a informação no documento ao alegar que seria “uma faculdade dos profissionais de saúde”.
Advogado acionado
Como houve resistência da equipe de saúde em preencher o nome do responsável legal na Declaração de Nascido Vivo do bebê, o companheiro do paciente acionou um advogado, que solicitou esclarecimentos da ouvidoria e dos profissionais do Hemu. “Reiteraram o argumento de que o preenchimento de tal campo é facultativo, segundo norma do próprio Ministério da Saúde”, relata Fabrício Rosa no ofício.
Mais uma vez, o companheiro do paciente perguntou se os dados não deveriam ser preenchidos após a solicitação dos genitores do bebê, já que se tratava de algo facultativo, mas não uma proibição. “Após muitas solicitações e pedidos de fundamentação das decisões da equipe de saúde, retificaram a declaração, incluindo o nome do genitor na DNV.”
De acordo com Rosa, o advogado que acompanhava o desenrolar do imbróglio perguntou aos profissionais que lidavam com o caso “se era costume negar para as mulheres (mães) cisgênero que preenchesse o campo ‘responsável legal’, mesmo com pedido expresso delas”. A resposta dada foi a de que esse não era o costume, “ou seja, ao se pedir o preenchimento do campo, a equipe de saúde costuma preenchê-lo”, detalha o vereador.
No cartório do Hemu
Mais uma vez, o casal passou por problemas no cartório do Hemu ao tentar fazer o registro do bebê recém-nascido. “O cartório que se localiza no Hospital Estadual da Mulher se negou a registrar a criança utilizando-se do argumento de que o sistema não aceita a entrada de dois homens e que somente a unidade principal do cartório poderia resolver essa situação”, descreve Fabrício Rosa na denúncia.
Após a negativa do cartório do Hemu em fazer o devido registro da criança, o casal e o advogado consultaram formalmente os cartórios da Capital, que responderam não existir qualquer impedimento ao registro de dois homens na certidão de nascimento. Atualmente, os cartórios adotam a linguagem neutra em seus registros, com termos como “genitores”, “parturiente”, “responsável legal” e “filiação”, entre outros. Só assim, em outro cartório, a criança pôde ser devidamente registrada.
“Diante do presente relato, podemos observar que as pessoas que trabalham na rede pública de saúde não possuem qualquer tipo de preparo para lidar com o atendimento de pessoas que fogem da cisheteronormatividade, inclusive reproduzindo e promovendo a LGBTQIA+fobia estrutural que temos em nossa sociedade”, aponta Fabrício Rosa.
Violações
De acordo com o vereador, houve violação dos Princípios de Yogyakarta, principalmente o 17, “alto padrão de saúde”; o 18, “proteção contra abusos médicos”; o 24, “constituir família”; o 25, “participar da vida pública”; e o 27, “promoção dos direitos “humanos”.
Além disso, a denúncia inclui o desrespeito aos artigos 1º, inciso III (“dignidade da pessoa humana”); 3º, incisos I (“construir uma sociedade livre, justa e solidária”) e IV (“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”); e 196 da Constituição Federal.
Segundo o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
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