O pandemônio jurídico e a pandemia

19 de agosto de 2020 às 10:14

Qualquer país que viva sob a escudo de um estado de direito tem como um de seus pilares a estabilidade das regras que determinam os rumos a serem seguidos por seus cidadãos. Em outras palavras, a segurança jurídica é fator determinante na qualificação de uma nação, especialmente na busca da prosperidade dos indivíduos que dela dependam.

Dentre os fatores que cooperam para a estagnação da economia estão a confusão de normas, a incerteza quanto à duração do ordenamento vigente ou, simplesmente, a dúvida quanto aos responsáveis por cada papel institucional. Trocando em miúdos: a insegurança jurídica. Lamentavelmente, esse é o retrato atual do Brasil na luta contra a COVID-19.

O aparato estatal organizado sob a égide da separação de poderes foi, teoricamente, arquitetado para promover segurança. A divisão de competências entre os entes federados e entre os Poderes Estatais, detalhadamente delimitada na nossa Constituição Federal, teve como escopo, precisamente, evitar que algum ente exerça poder desproporcional em detrimento dos demais.

Infelizmente, diante do caos instaurado pela pandemia mundial, percebemos que esse robusto sistema, com seus tão celebrados “freios e contrapesos”, acaba por promover, justamente, o que deveria evitar: a completa e total incerteza.

A situação é tão caótica que, não bastasse a dúvida quanto à qual determinação do Executivo cumprir (municipal, estadual ou federal), ainda somos submetidos aos desmandos de um Judiciário sem medidas. A situação beira o absurdo. Comerciantes que já vêm enfrentando meses de prejuízos por conta da situação da saúde pública, em poucas horas, veem os planejamentos serem apagados subitamente, pela força de uma canetada.

Se trouxermos a realidade para o âmbito das normas trabalhistas, por exemplo, as MPs editadas não conseguem acobertar, sequer, a metade dos desdobramentos gerados pelos decretos estaduais e municipais, que parecem decidir quanto à abertura ou fechamento dos estabelecimentos de maneira absolutamente aleatória.

Problemas sérios como a responsabilidade quanto ao pagamento de verbas alimentares básicas, suspensão de contratos trabalhistas e demissões em massa, ficam sob a dependência da eterna guerra estabelecida entre os Poderes. Talvez porque seja o Poder a que o cidadão pode recorrer de maneira imediata, o Judiciário vem dominando esse cenário. Basta uma liminar para que se derrube um decreto, uma lei ou até mesmo um Princípio Constitucional.

O Poder Judiciário, por mais que desempenhe o papel fundamental de fiscalizar a legitimidade dos atos emanados de outros Poderes, não pode tornar-se absoluto e, muito menos, absorver as funções típicas do Executivo e Legislativo. Ao mesmo tempo, precisamos que, especialmente em casos excepcionais, os demais entes consigam fornecer garantias mínimas aos cidadãos.

Seguimos perdidos, em meio a um emaranhado de regras que não nos levam a lugar algum.  Ironicamente, o país cuja Constituição mais se preocupou em detalhar a quem compete cada papel, é um dos que mais sente o peso da insegurança de não saber a quem recorrer, sobretudo em momentos de crise. Mais uma vez, a corda parece romper do lado mais frágil.

 

*Carla Zanina Oliveira de Almeida é advogada especialista em Direito do Trabalho

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